Entrevista com o Presidente do CONSEA-MG, D. Mauro Morelli, sobre o “Dia Mundial da Alimentação”
Dom Mauro Morelli é presidente do Conselho de Segurança Alimentar de Minas Gerais e um dos maiores expoentes no Brasil da luta contra a fome e a desnutrição. Foi presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e também do Conselho de Segurança Alimentar de São Paulo, além de promotor e defensor da nutrição e alimentação para o mundo, pela Organização das Nações Unidas (ONU). Um dos formuladores do programa Fome Zero, integrou, junto com Betinho, a Ação da Cidadania contra a Miséria, a Fome e pela Vida e segue mobilizando diversos setores, dialogando com governos, universidade, empresas e sociedade civil na busca pela segurança alimentar. Para celebrar o Dia Mundial da Alimentação, 16 de outubro, Dom Mauro Morelli concedeu uma entrevista ao Portal Conselhos MG na qual fala sobre os conselhos de políticas públicas, os desafios dessa luta e as mudanças necessárias na sociedade para que a segurança alimentar seja um direito efetivo para todos.
Qual o papel dos conselhos de políticas públicas na busca pela segurança alimentar no Brasil?
Em geral acho que um conselho está ligado ao grau de democracia que nós atingimos. O conselho pode ser tolerado, pode ser apenas um instrumento de ratificação de alguma coisa, pode ser um instrumento de consulta sério e pode chegar, inclusive, a ser um instrumento de ajuda ao governante. Uma das coisas que aprendi quando surgiu o primeiro conselho de segurança alimentar, é que você não apenas elege um governante. Você senta com ele, ajuda a responder os desafios da realidade - especificamente nesse caso da alimentação e nutrição- ajuda a elaborar respostas e contribui para que elas sejam de fato implementadas.
Eu vejo o lugar dos conselhos como uma expressão da democracia. Na minha compreensão, os conselheiros deveriam ser pessoas críticas. A crítica é uma leitura profunda da realidade que perturba. O crítico é aquele que fica perturbado com o que vê. Ele faz emergir uma verdade que incomoda a ele mesmo e sabe também apontar caminhos. Um bom governante precisa de bons críticos. Aí falamos da qualidade mais preciosa em um conselho, que é a postura do governante e de seus colaboradores – que são os conselhos – para enfrentar as questões, entendê-las sem pânico, com senso profundo de realidade e, além de tudo, descobrir caminhos, serem capazes de formular respostas. Esse é um caminho que eu acredito muito.
A dificuldade de um conselho é exatamente como ele vai ser levado a sério. Em uma sociedade autoritária, com uma cultura autoritária, e que tem uma estrutura de poder muito forte, qual a relevância de um conselho? Uma realidade normal do que você encontra pelo país afora são conselhos constituídos sem a participação do cidadão e que não têm de fato essa convocação para dar uma palavra séria, ainda que dura.
E por que o povo não acredita muito em conselhos? Porque ele sabe que o padre, o pastor, o prefeito, o governador têm poder. Se quer, faz, se não quer, não faz. Eu admiro qualquer governante que, na estrutura autoritária em que está envolvido, sabendo que tem o poder para fazer e desfazer, ainda tem a capacidade de valorizar a contribuição de seu povo. O povo tem ânsias, tem vivências, tem vontades, enxerga as coisas, mas não tem um canal efetivo para se expressar. O conselho seria um desses canais.
Qual a importância da criação do primeiro Conselho Nacional de segurança alimentar no Brasil?
O Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA) foi fruto de um acordo entre o presidente da república e o Movimento pela Ética na Política. O movimento indicou 19 dos 21 conselheiros e o presidente honrou toda a lista que estava lá. Nisso já tem um avanço, pois ele não escolheu o seu Conselho. E na ocasião, quem presidiu o Conselho não era governo. Eu fui presidente do Conselho e isso era uma situação única.
Em 93 o CONSEA inaugurou algo muito novo na composição, no acordo feito, no respeito da indicação dos nomes. Foi novo para inaugurar uma proposta de resposta a uma realidade, que era o desafio da fome na época, e conseguir grandes coisas. Aí se via toda a sociedade buscando entender, responder, com medidas emergenciais e também com medidas estruturais. Nós tivemos a primeira Conferência Nacional de Segurança Alimentar em 1994 com 1.800 delegados. Nós tivemos uma ação de emergência no Nordeste com a seca dos rios: chegamos lá com 8 mil caminhões, 12 mil soldados, fomos a 2 milhões de famílias em mais de mil e tantos municípios levando comida. Longe do que deveria ser, mas impressiona. Então acho que isso foi um momento especial.
Houve um momento maravilhoso, depois tudo vai caindo na real. Toda comunidade passa por um momento de muito vigor e depois as coisas vão se distendendo. Então é preciso que, constantemente, a gente recupere o vigor primitivo. E fizemos esse caminho.
O conselho mais antigo do Brasil é o de Minas Gerais, que está com dez anos. O que nós vivemos aqui, eu acho que é um exemplo: a primeira lei de segurança alimentar e nutricional do Brasil saiu daqui. Acho que isso também é novo. Na diversidade das visões ideológicas, as pessoas serem capazes de entender as questões fundamentais.
Eu acho que um conselho deve trabalhar também essa capacidade de valorizar as diferenças e se unir no clamor e na proposição de caminhos para superar e combater todos os dias as desigualdades e toda forma de discriminação. Acho que o conselho tem que ter essa maturidade.
O Brasil vive um momento de grande mobilização para a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional 047/2003, que inclui a alimentação entre os direitos sociais de todos os brasileiros. Qual impacto dessa lei?
Na cabeça dos religiosos e dos políticos, alimentação é um problema de assistência social, então geralmente é a primeira-dama que cuida. No próprio governo Lula a questão se estruturou como uma questão de assistência social e não de direito. Eu sempre digo que a assistência social no Brasil tem uma lei boa, que é a LOAS, é uma lei fundamental. O que não é bom é você tratar como assistência o que é um direito.
Não basta estar na constituição como um dos direitos sociais fundamentais. A nossa cultura trata a alimentação como uma questão religiosa, de piedade, de assistência. O Papa Bento XVI, em uma encíclica de junho, diz que para a Igreja, cuidar da alimentação dos famintos é um imperativo ético. Ele vai em frente dizendo que não é uma questão de caridade, é uma questão de justiça. Não se pode dizer que se fez caridade se aquilo era um direito da pessoa. É um negócio bastante sério. Isso explica porque não há grandes avanços, depois de todos esses anos.
Em junho desse ano, a lei nº 11.947, que prevê que 30% da alimentação escolar deve ser abastecida pela agricultura familiar, foi aprovada. Quais as expectativas de mudança a partir disso?
Com essa lei você abre caminho para uma grande mudança na produção dos alimentos. A lei convoca a agricultura familiar para ser a grande produtora de alimentos saudáveis, adequados, eu diria solidários, para a alimentação escolar. A lei diz que o prefeito deve comprar pelo menos 30% da agricultura familiar. Ela diz que é uma questão de educação. As escolas devem incluir em seu currículo a educação alimentar e nutricional, teórica e prática. A horta faz parte. A experiência de conhecer sementes, plantar sementes, preparar, cozinhar e comer é uma questão de educação, veja que progresso.
O prefeito deve procurar no seu município a alimentação. Se ele não tem, vai para o vizinho. Só atravessa a fronteira do estado quando ele não encontra no seu. O que a natureza oferece onde eu vivo, é um critério de nutrição. Esta lei diz assim: olhe para a natureza de sua região, organizem-se, recolham dali tudo o que é saúde para a criança. Então estou entusiasmado com o caminho que está aí.
O tema escolhido pela ONU para o Dia Mundial da Alimentação desse ano foi "Alcançar a Segurança Alimentar em Época de Crise". Como a crise pode impactar o futuro da alimentação?
O caminho que se tem pela frente é um caminho de busca, de perseverança, de humildade. Nós estamos hoje atravessando uma grave crise de alimentos no mundo por causa da economia globalizada em crise. Mas essa crise pode ser que se resolva. Em relação ao alimento, tenho uma posição meio radical: enquanto o alimento for moeda, vai haver degradação ambiental, exclusão e fome no mundo. Pobres, ricos, mulheres e homens somos todos iguais na necessidade de alimentação, embora nas oportunidades não.
Eu acho que a crise que está no mundo é muito grande e a crise ambiental vai tornar essa questão mais grave ainda. Todo o sistema agroalimentar vai ser sacudido pela questão ambiental. A Sibéria produziu o que nunca foi capaz de produzir, enquanto a África está estorricada. Acho que nos estamos em uma crise de civilização, não só de economia. Então uma nova sociedade tem que emergir porque essa nossa é insustentável. Fico feliz de ser semente e peço a Deus que seja uma semente boa e uma pequena luz. Se você me perguntar aonde nós chegamos, eu digo: a luz está acesa e as sementes estão por aí. Agora o desafio de mudança é muito grande. Chegou o tempo de mudança, é o tempo do novo.
Por que alimentação deve ser tema prioritário nas políticas públicas?
Depois da vida, o primeiro direito é o da alimentação, pois tudo mais depende disso. Se uma criança não tiver a alimentação adequada, seus neurônios não vão se desenvolver e ela não vai atingir o grau de desenvolvimento psicológico e de inteligência que um ser humano pode ter. O Conselho de Segurança Alimentar, sem querer ser arrogante, é a base de todos os outros. Como você vai fazer educação sem alimentação? O direito a alimentação é precioso para o idoso, ele é precioso para o são, ele é precioso para a criança, pro estudante. Então qualquer conselho devia colocar em sua agenda a questão da alimentação e da nutrição das pessoas. Alimento mexe com tudo, com a inteligência, o bom humor, a criatividade. Você pega os oito objetivos do milênio e vai ver: o alimento e a nutrição são a base ou a razão de ser de todos os objetivos.
Quando começa a agricultura, você começa todo um desenvolvimento cultural. Desenvolve a mecânica, a engenharia, a medicina. A partir da descoberta do canteiro que as mulheres começaram a cultivar é que os homens começaram a se assentar. Você tem toda a tecnologia, todos os hábitos que se desenvolvem, os ritos, as celebrações, tudo que conhecemos está ligado a uma semente que foi trabalhada e domesticada. Aí o homem saiu da insegurança alimentar e passou a viver um estágio de segurança alimentar, no qual se produz o que se precisa comer. E hoje nós temos que entender de novo esse equilíbrio. Não tire mais do que você precisa do meio ambiente, e tire com gratidão.
Fonte: Luciana Vidal – IGS/CEMAIS
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