domingo, novembro 22, 2009

UM PAPO SOBRE RACISMO - Rodrigo Quaresma

UM PAPO SOBRE RACISMO
Rodrigo Quaresma

“Já pretenderam apressadamente: o preto se inferioriza. A verdade é que ele é inferiorizado.” FANON *

Niterói. Segunda-feira, 16 de novembro. Após estudar durante algum tempo na biblioteca da UFF, caminho pelas ruas rumo a uma farmácia em busca de alguns artigos pessoais. Logo de entrada na loja sou recebido por um olhar fulminante do segurança – um misto de estranheza, curiosidade e atenção. A cor do segurança? Negro.

Passeio então pela farmácia, olhando as prateleiras, tateando os produtos, enquanto percebo a atenção policialesca do segurança sobre mim. “Coisa da minha cabeça?” Continuo procurando os meus artigos, lendo os rótulos, vendo os preços... Para desencargo de consciência resolvo fazer um teste: mudo de prateleira, avanço pela loja adentro e, quando menos espero..., estou novamente sobre o campo de visão do segurança: ele me acompanha “disfarçadamente”...

Por fim, tendo escolhido os meus artigos, encaminho-me ao caixa da loja; antes, no entanto, como num golpe inesperado, paro, estaco na frente do “segurança negro” e busco os seus olhos – “farei um discurso? Gritarei: traidor! Capitão do mato!?”-, mas não os acho, eles estão baixos, ele não me olha, não ousa me fitar: ele sabe que eu sei; eu sei que ele sabe.

Contemplo sereno então o meu irmão de cor que ainda se encontra com a mente colonizada. Serenidade esta, no entanto, que não se confunde com a negação da realidade e tampouco com a incapacidade de se indignar; falo de compaixão.. Nesse caso específico não havia nada mais a ser feito**, a não ser observar pedagogicamente a dinâmica do racismo. Foi o educador Paulo Freire quem nos ensinou que o oprimido introjeta o opressor.

Vejam bem, eu não fui impedido de entrar naquela farmácia; não havia em sua entrada nenhuma placa dizendo “proibido a entrada de negros”. Também não fui expulso da loja, tampouco fui agredido física ou verbalmente (ainda que tal evento se constitua como uma agressão psicológica). Mas a minha cor, meus traços e tipo de cabelo (e não minha condição sócio-econômica), me impediram de passar despercebido naquela loja. Ali não pude ser apenas mais um consumidor. Fui “racializado”; recebi um tratamento “especial”..

Coisas desse tipo acontecem comigo e com outros negros e negras diariamente. Quando chego num ponto de ônibus à noite e as pessoas lentamente se afastam; quando caminho pelas ruas e tento ultrapassar uma pessoa e sou percebido com espanto por alguém que acha que será assaltada; quando no ônibus alguém desiste de sentar ao meu lado após me “olhar direito”; quando os vendedores de uma loja fingem que não me vêem; quando o garçom passa direto pela minha mesa sem me notar; quando pergunto a hora pra alguém na rua e a pessoa toma um susto; quando o sistema de segurança de um banco se endurece ao me receber: a saga de passar pela porta-giratória; todos os olhares e toda atenção naquele momento ( ih, a porta travou: será que ele é assaltante?); quando estou no ônibus e numa blitz somente os negros são revistados; quando sou abordado na entrada de prédios comerciais e indagado sobre o meu destino no mesmo (em lugares que isso não é o procedimento padrão); quando caminho abraçado com minhas amigas brancas pelas ruas e somos recebidos com certo tom jocoso, um riso de canto de boca de alguém que encontrou uma explicação genital para a nossa relação, enfim... São múltiplas injunções racistas que incidem sobre a emocionalidade negra e a constrangem; e ainda que possa variar, isso é um drama comum. Desnecessário dizer que tudo isso me afeta em profundidade e concorre para a limitação da minha expressão como pessoa humana.

Penso que tais fatos são bem ilustrativos do nosso modelo de relações raciais. Para subjugar e excluir nosso país pode prescindir de segregação legal; e isto, penso eu, menos por virtude do que por falta de necessidade. É pelo silêncio e pela invisibilidade que o nosso racismo opera. Fala-se, com efeito, do que se convencionou chamar “racismo do negro”. Tal expressão, no entanto, é ideológica uma vez que a auto-rejeição do negro e a rejeição dos seus pares é uma atitude aprendida e aprovada socialmente, sendo, em verdade, produto do próprio racismo. É comum que os negros e negras se neguem numa sociedade em que os referenciais simbólicos positivos são brancos.

Esta é então a contribuição que eu gostaria de dar ao nosso 20 de novembro: o testemunho de minha experiência existencial como sujeito negro. Penso que o dia da consciência negra deva ser celebrado por todos os segmentos raciais da sociedade brasileira, constituindo-se num momento privilegiado de reflexão das relações étnicas e raciais em nosso país, trabalhando no sentido de ressignificar e redimensionar o inenarrável contributo africano e afrodescendente ao Brasil.

Sim, consciência negra. Não que a consciência tenha cor, mas porque é preciso trazer a cor à consciência. Para que a minha irmã de cor não se sinta obrigada a alisar o seu cabelo; para que o homem negro não se sinta obrigado a raspar a cabeça (cabelo “ruim”); para que a mulher negra se sinta bonita; para que a criança negra não tenha vergonha da sua cor, do seu cabelo e lábios; para que as mães negras não coloquem pregadores nos narizes dos seus filhos/as; para que a criança negra não seja chamada de macaca na escola; para que o nosso sofrimento não seja motivo de graça.

Valeu ZUMBI!

*FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

** Em outros momentos será preciso agir de forma mais afirmativa, seja apelando para mecanismos jurídicos ou através de ações diretas.

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