domingo, novembro 22, 2009

O SACO - Rubem Alves

O SACO

Rubem Alves

Como parte do meu programa de rejuvenescimento – pois estou firmemente decidido a voltar a ser criança – entreguei-me às delícias da leitura do livro de Jonathan Swift, Viagens em Diversos Países Remotos do Mundo, em quatro partes, por Lemuel Gulliver, a Princípio Cirurgião e, depois, Capitão de vários Navios, vulgarmente conhecido pelo título abreviado de As Viagens de Gulliver. O que é uma pena, pois a abreviação omite uma informação, valiosíssima para todos os moços que hoje ou estão na euforia de haverem passado no vestibular, ou na tristeza de não terem passado; informação sobre os descaminhos da escola profissional, pois o herói, que era cirurgião, de repente, lá no meio da vida, percebeu que havia feito o vestibular errado, não deveria ter entrado na escola de medicina, pois o que ele desejava mesmo eram as aventuras de comandar navios por mares desconhecidos.

Se acham que isso é impossível, eu digo que não, pois tenho um amigo que, vivendo nas Montanhas Rochosas, nos Estados Unidos, e com a profissão de médico de almas, pastor protestante, disse adeus a tudo e me escreveu uma carta logo antes de partir de viagem, no comando do seu primeiro navio.

O prazer da leitura hoje, quando estou navegando ao contrário, da velhice para a infância, é totalmente diferente daquele que tive quando li o livro pela primeira vez, quando eu navegava da infância para a velhice. Só se pode ser criança direito depois de ter sido velho. Pois, naquele tempo, eu não podia entender o que ele estava dizendo, coisas que entendo agora e, se na minha viagem de volta à infância, eu não chegar à idade de desaprender a escrita, haverei de contar algumas das maravilhas que Gulliver relata.

Por hoje, interessa-nos a visita que ele faz a uma famosa instituição de ensino superior no país de Lagado, que reunia muitos pesquisadores de renome, parecida, eu imagino, com as nossas universidades. Pois ali, entre os mais diversos projetos de investigação científica, havia os lingüistas, que se dedicavam a aperfeiçoar a linguagem do seu país, com o objetivo de facilitar a compreensão entre os homens. Convencidos de que muitas brigas e desavenças se deviam apenas a desentendimentos provocados pela ambigüidade das palavras, concluíram que tais querelas desapareceriam totalmente se as palavras, fonte dos desentendimentos, fossem substituídas pelas coisas que elas devem significar. Os filósofos e cientistas abandonaram então o uso da palavra e passaram a carregar em sacos os objetos sobre os quais queriam falar. E ele relata: Vi muitas vezes dois sábios quase caindo ao peso de seus fardos os quais, quando se encontravam na rua, punham no chão a carga, abriam os pacotes e conversavam durante uma hora, em seguida guardavam os apetrechos, ajudavam um ao outro a pôr o fardo às costas e despediam-se.

Se esse novo jeito de comunicação eliminava os desentendimentos, tinha certos inconvenientes. Por exemplo, um zoólogo teria dificuldades em arrastar seu saco de animais pelos caminhos, não só porque ele deveria ser do tamanho da Arca de Noé, como também pela confusão que os animais aprontariam.

E aí eu pensei se não deverá ser muito maior que a Arca de Noé o saco dos nossos pobres adolescentes, arrastando o seu saber para fazer seus exames vestibulares. Se disserem que idéias não têm peso e nem ocupam espaço, direi que estão redondamente enganados. A mente tem sua própria geometria e sua própria física. E o problema é que eles deverão levar elefantes, dinastias de faraós egípcios, batalhas, bibliotecas inteiras, países e mares, pois nunca se sabe sobre o que versará a conversa do tal exame.

Pelo que Gulliver relata, o projeto foi abandonado por razões óbvias. O corpo não é trouxa de ficar arrastando um saco daquele tamanho. E é justamente isso que vai acontecer com os que passaram no vestibular: já que eles sabem que não mais terão necessidade de falar sobre aqueles assuntos todos, e nem haverá ocasiões para tal, eles irão progressivamente esvaziando o saco das inutilidades que ali foram colocadas, até chegarem à condição bem-aventurada de professores universitários, que só carregam nos seus sacos aquilo de que têm necessidade nos seus afazeres. Pois essa é uma lei de memória: aquilo que não é usado, é esquecido. O vestibular, assim, revela-se apenas um penoso, dolorido e obtuso exercício mental, cujos resultados estão condenados ao quase total esquecimento. Tenho feito e repetido um desafio, que ninguém se atreveu até hoje enfrentar: que os professores universitários, com seus mestrados e doutoramentos, se submetam aos ditos exames, do jeitinho como os adolescentes, para testar a sua performance. Minha aposta é que uma altíssima porcentagem seria reprovada, eu entre eles, o que não quer dizer que os professores sejam incompetentes: quer dizer apenas que o tal exame não faz sentido. Desafio os responsáveis pelos vestibulares a fazerem essa prova no ano que vem, só pelo humor dos resultados...

Começa agora um novo estágio: os que passaram podem se entregar às delícias do esquecimento, esvaziar o saco. Os que não passaram, se matricularão nos cursinhos para preencher os seus sacos que não estavam suficientemente cheios, na esperança de que o dia chegará em que poderão esvaziá-los para só colocar dentro deles o que fizer sentido para sua vida e trabalho.

7/2/94

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