quarta-feira, dezembro 01, 2010

UMA REFLEXÃO – Pr. Henrique Vieira

UMA REFLEXÃO

Pr. Henrique Vieira

As cenas que assistimos no Rio de Janeiro nestes últimos dias nos entristecem, nos amedrontam e movem nossas emoções. Uma mescla de medo, de pânico, de indignação, de revolta, de raiva, de desespero, de sede por justiça ou por vingança. Tenho procurado refletir bastante, atentar a tudo, orar e ouvir a fim de fugir de sensacionalismos, de opiniões irrefletidas e apenas pautadas na força de uma emoção.

O momento é de crise e de pressão e isto leva a necessidade de uma resposta rápida e eficiente do Estado a fim de controlar, contornar e reagir à situação. Ver pessoas não sendo mais dominadas pelos agentes do tráfico nas favelas de fato traz alívio. Todos sabem das atrocidades ali cometidas e o quanto o povo da favela sofre com esta criminalidade. Contudo a questão é muito mais complexa e não se resolve com a ocupação da polícia no Complexo do Alemão e na Vila Cruzeiro. O sensacionalismo midiático, especialmente global, é intencionalmente alienante.

A idéia de guerra me incomoda, embora as cenas apontem para tal realidade. A fraude midiática, como aponta Marcelo Freixo, nos faz acreditar que existe uma polaridade muito bem definida entre os marginais e o Estado e que a atual ação policial se assemelha ao chamado Dia D da Segunda Guerra Mundial. Um discurso bélico, retro alimentador da violência e que não compreende as causas multidimensionais do problema da insegurança no Rio e no Brasil.

O tráfico de drogas e de armas é internacional e altamente lucrativo e articulado e de forma alguma se restringe, se resume ou se que quer tem sua verdadeira liderança nas favelas do Rio. Ali está o varejo, a mão de obra farta e barata. Quero deixar bem claro que o dedo que aperta o gatilho de uma arma em uma favela deve ser enfrentado (é importante dizer isso em função da visão preconceituosa e forjada midiaticamente que muitas pessoas têm a respeito dos militantes dos direitos humanos), mas que o dedo que conta o dinheiro e contabiliza o lucro de todo este caos também deve ser enfrentado.

O discurso de guerra apontado pela mídia e abraçado com paixão por muitos reduz a questão e mais uma vez restringe a criminalidade ao espaço da pobreza. O que se é esperado são respostas rápidas, enérgicas, eficientes e vamos todos torcendo pelo Estado Puro, isento de corrupção e fraudes, representação máxima da pureza e do bem comum contra os maldosos e malvados. São atitudes meramente sensacionalistas que impedem que a segurança pública seja pensada de forma multidimensional e preventiva, não meramente reativa como afirma Luís Eduardo Soares.

Talvez seja preciso formular melhor as perguntas. Como, quem, onde e em que circunstâncias as armas e as drogas chegam ao Rio? Como apontou Marcelo Freixo “é preciso patrulhar a baía de Guanabara; portos, fronteiras, aeroportos clandestinos. O lucrativo negócio das armas e das drogas é máfia internacional. Ingenuidade acreditar que confrontos armados nas favelas podem acabar com o crime organizado. Ter a polícia que mais mata e mais morre no mundo não resolve”.

Também é preciso com humildade, autocrítica e vontade política reconhecer que o crime que está sendo atacado não é paralelo ao Estado, mas infiltrado em suas próprias estruturas. Mas nesta hora nos esquecemos totalmente disso.

É preciso reconhecer que apesar dos muitos policiais honestos, íntegros, corretos e bem intencionados que arriscam suas vidas por um salário indigno e que trabalham em péssimas condições, a corrupção e o sistema da criminalidade passa pela policia.

Além dos arregos, da negociação de armas e de drogas ainda se tem as milícias, que inclusive são muito melhor organizadas e mais rentáveis economicamente do que o próprio tráfico “não institucional”. Isto porque as milícias não tiram seu lucro apenas das drogas, mas abrangem serviço de transporte, de gás, de televisão e muitos outros. Tudo dentro de uma lógica coercitiva, dominadora, cruel e que basicamente o indivíduo paga para não ser morto e ser protegido justamente por quem ameaça lhe matar.

Como afirmou Luis Eduardo Soares “ distinguir de fato crime e polícia deveria ser a meta mais importante e urgente de qualquer política de segurança digna desse nome”. Segundo ele não há nenhuma modalidade importante de ação criminal no Rio de Janeiro de que segmentos policiais corruptos estejam ausentes e é só por isso que ainda existe tráfico armado e milícias.

Outra lógica um tanto quanto esquisita e até um pouco engraçada é aquela do “está ruim porque está bom”. Ela aponta que por causa das UPPs o tráfico está reagindo e por esse momento de desespero e de pânico. Em primeiro lugar o modelo de tráfico teritorializado, dependente de aramas e drogas já vem em decadência e perdendo espaço para outras formas de criminalidade faz algum tempo. Como afirma Luis Eduardo Soares “ o tráfico no modelo em que se firmou no Rio de Janeiro, é uma realidade em franco declínio e tende a se eclipsar por sua própria irracionalidade econômica e sua incompatibilidade com as dinâmicas políticas e sociais, predominantes me nosso tempo histórico. Incapaz inclusive de competir com as milícias...”

Em segundo lugar o Estado deveria prever e se antecipar a esse tipo de reação, já que é óbvio e tão óbvio que é o que está acontecendo. Em terceiro lugar o mapa da instalação das UPPs é muito revelador. Isto porque apesar dos maiores índices de criminalidade se situarem na Baixada Fluminense as UPPs estão sendo implementadas no corredor hoteleiro do Rio e na zona portuária, onde há grandes somas de investimento de capital.

E ainda se pode dizer que apesar do avanço de uma lógica policial mais comunitária respeitando a cidadania e a dignidade dos moradores das favelas as UPPs não trazem consigo creches, escolas, postos de saúde, distribuição de renda e acesso a outros tantos direitos. Está aí um ponto fundamental escondido atrás do discurso vitorioso de guerra. Uma política de Segurança Pública deve passar pela garantia de direitos básicos aos moradores das favelas.

As reformas neoliberais da década de 90 que tanto beneficiaram o mercado financeiro, os credores internacionais , os banqueiros, os grandes empresários causaram uma deterioração ainda maior nos serviços públicos, um sucateamento ainda maior do setor público, uma ineficiência acentuada do Estado em dar garantias sociais, um aumento da concentração de renda e da desigualdade social.

É o Estado mínimo do mercado livre na área econômica, mas que é Estado máximo da área penal para a população mais pobre. Boa parte desta gente moradora de favelas não conhece a dinâmica do direito que elas têm, pois o aparato do Estado que elas mais conhecem é sua veia penal, punitiva e repressora.

Percebe-se uma lógica de acentuação da pobreza e depois de criminalização da mesma, um Estado Mínimo na sua lógica econômica e financeira e na garantia de direitos, contudo máximo no seu aparato penal, especialmente voltado para os mais pobres.

Confesso que estou vivendo uma mescla de sentimentos. Oro e torço para que haja a preservação da vida e para que aquelas comunidades possam viver agora em paz longe de todas e quaisquer atrocidades, mas fico muito assustado com o discurso dominante que inflama tantas paixões.

Historicamente foi o discurso do medo que legitimou governos autoritários e ditatoriais. Reconheço que a dinâmica é diferente, mas apenas guardo esta reflexão e fico atento. Também me chama atenção a preocupação que agora aparece com os moradores da favela e que bom que pelo menos apareceu agora e espero que continue. Porque me parece que foi preciso o terror descer para o asfalto e desorganizar a vida aqui em baixo para haver uma comoção enorme e exigência de uma resposta eficiente.

Imaginem viver no pânico todos os dias!n Caminhando para o fim cabe lembrar que 99,5% dos moradores das favelas são trabalhadores reféns deste tráfico cuja estrutura transcende aquele espaço. Ali mesmo não há nenhum rime organizado, ali a linguagem é a da barbárie e não há nenhuma expectativa de vida para os que entram nessa vida.

Defender direitos humanos é uma caminhada árdua porque muitas vezes se ouve comentários altamente preconceituosos, mas faz parte da caminhada. Aceito e desejo diálogos que possam contribuir com a formação e a reformulação dos meus pontos de vista.

Que a súplica do nosso coração e dos nossos lábios seja: “corra justiça como um rio perene” (Profeta Amós).

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