OS MUITOS EUS
Ricardo Gondim
De tempo em tempo escrevo experiências já vividas; antecipo-me à perda da memória. Nesses passeios ao passado, desisti de voltar aos lugares que me marcaram. Meu mundo adulto encolheu; o vasto universo infantil desaparece aos poucos. Mas não consigo me desvencilhar das personagens que me impressionaram. Vez por outra elas me desobedecem e saem das sombras; nem todos me alegram, alguns insistem em me atormentar.
De Londrina não revejo apenas o pó vermelho que encardia os pés e tingia o céu em tardes de temporal – Como dava medo! Ressuscito vultos; amigos que me ensinaram a nadar em ribeiros e represas. Da velha catedral londrinense, não esqueço o rosto do padre que me estendeu o primeiro sacramento.
Meu passado não foi perfeito. Cedo, conheci pessoas ruins, tipos esquisitos que me mostraram um mundo perigoso.
Papai estava preso e permanecia incomunicável em alguma base militar do Brasil. Logo antes do golpe, ele pedira transferência de Londrina para outro destacamento aéreo, mas antes do despacho oficial, o governo capitulou. Mamãe, grávida de gêmeos e mais cinco filhos, viu-se no meio da tormenta. A situação se agravava a cada momento. Sem eira nem beira, não tínhamos para onde voltar e não sabíamos para onde ir. Acabamos na apertada casa de vila dos meus avós em Fortaleza. Precisando estudar, fui matriculado em um Grupo Escolar.
O prédio era mal cuidado; as carteiras, pensas, pareciam prestes a desabar. A lousa guardava um verde desbotado. Na primeira semana de aula eu e meu irmão chamávamos a atenção devido ao sotaque paranaense. A choça dizia que soava afeminado. Nunca hei de esquecer a manhã quando ouvi: “Veado!”. Fui na direção da voz, disposto a brigar. Não dei três passos e seis formaram uma parede humana; todos mais fortes e mais velhos do que eu. Um deu um passo à frente para me afrontar. Mas não ousei nenhum gesto. Ele então escarrou e cuspiu no meu rosto.
Ódio, raiva, ira, furor, acenderam uma febre súbita por todo o meu corpo. Rompeu-se a indignação que eu represava pela prisão do papai, de não ter casa ou quarto de dormir, de pressentir que jamais voltaria a me deitar no colo da mamãe, como em Londrina, de frequentar uma escola vagabunda, de ter perdido antigos amigos. Tentei não chorar, e dei as costas para o grupo. Enxuguei o cuspe, mas o ódio permaneceu. Por anos, procurei guardar aquela fisionomia para matá-lo.
Pergunto-me se já consegui esquecer a afronta. Acho que sim. Cheguei a esforçar-me para redesenhar sua expressão odiosa, mas ele sumiu nos anos que se passaram. Sem um rosto o ódio não consegue se adensar. Embora a memória daquele dia continue vívida a raiva passou. Escrevo procurando resignificar aquele passado. A maldade só é destruída quando a bondade anula a ferocidade do rancor.
Outras decepções me marcaram desde então. Não esqueço: namoradas me traíram; amigos que me consideraram pobre (eu não tinha dinheiro para comprar um mísero refrigerante na praia) seguiram por outras trilhas.
Perguntam-me sobre a minha tristeza. Respondo: ela é filha das decepções, mas a mãe dos vários eus que convivem dentro de mim. Sou filho das dores e alegrias que me sobrevieram ao longo dos anos. Viver é isso: não deixar que as alegrias me deixem superficial ou que as dores me desfigurem pelo ódio. Lembro de Mia Couto: “Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim, não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha única vida. Vamos tendo nossas mortes. Mas parto foi só um. Aí, o problema. Por isso, quando conto a minha história me misturo, mulato não de raças, mas de existências”.
Nas existências que vivo, aprendo resiliência, perseverança e santa teimosia que, juntas, me animam ao imperativo de amar.
Soli Deo Gloria
FONTE: http://www.ricardogondim.com.br/Artigos/artigos.info.asp?tp=66&sg=0&id=2292
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