SOBRE PÁSSAROS E GAIOLAS
Rubem Alves
Deus criou os pássaros.
As religiões criaram as gaiolas. As gaiolas criadas pelas religiões são feitas com palavras. Elas têm o nome de dogmas. Dogmas são gaiolas de palavras que pretendem prender o Pássaro. Guerra Junqueiro, poeta português, escreveu um longo poema que se tornou clássico sobre este assunto: “O Melro”. É bonito. Merece ser lido.
Escrevi, para minha filha pequena, uma estória sobre um Pássaro Encantado e uma Menina. Pássaro e Menina se amavam.Mas sempre chegava o momento quando o Pássaro dizia: “Preciso ir”. A menina chorava e dizia: “Não vá. Nós nos amamos tanto!” O Pássaro respondia: “Eu preciso ir para ter saudades. Porque o meu encanto nasce da saudade!” E partia. A Menina, então, teve uma idéia perversa: engaiolar o pássaro para que ele nunca mais partisse. E assim ela fez. Quando o Pássaro voltou, cheio de estórias para contar, cheio de penas de novas cores, enquanto ele dormiu, ela o engaiolou numa linda gaiola de prata. Ao acordar o Pássaro deu um grito de dor. “Menina, vou perder meu encanto. Vamos perder o amor!” E assim aconteceu. Foram-se as cores. Foram-se as estórias que ele contava. Foi-se o amor.
Escrevi esta estória porque eu ia partir para uma longa viagem e minha filha de quatro anos estava muito triste. Depois de publicada fiquei sabendo que meus colegas terapeutas a estavam usando para lidar com as relações amorosas, maridos engaiolando esposas, esposas engaiolando maridos, maridos querendo voar, esposas querendo voar... Aprovei. Aí um amigo me disse: “Que linda estória você escreveu sobre Deus!” Perguntei: “Que estória?” Ele me respondeu: A da Menina e do Pássaro encantado. Pois o Pássaro Encantado não é Deus que as religiões tentam engaiolar?”.
Um Deus engaiolado nas gaiolas de palavras chamadas dogmas é sempre menor que a gaiola. Esse Deus não é pássaro que voa, é pássaro empalhado.
Deus mora na saudade.
Deus mora na nostalgia.
Deus mora na saudade.
Deus mora na nostalgia.
Pelo menos foi aí que Santo Agostinho o encontrou; num lugar obscuro e doloroso da memória, onde só há silêncio, não há palavras.
Deus não nos deu asas. Deu-nos o pensamento. Voamos nas asas do pensamento. A ciência, a literatura, a música, as artes plásticas, o balé, a culinária, os brinquedos, as coisas que nos dão alegria, são todas criaturas do pensamento. Primeiro voamos na fantasia para, a seguir, criar. Miguel Ângelo primeiro pensou a Pietá para depois esculpir a Pietá... O pensamento são as asas que Deus nos deu.
Assim, tudo aquilo que proíbe o vôo livre do pensamento é contrário ao nosso destino. A questão não é pensar certo ou pensar errado. Afinal, quem sabe o que é certo e o que é errado? A questão é simplesmente pensar. Sem pensamento livre a alma está engaiolada.
O fato é que a história do Cristianismo está cheia de gaiolas. Quantos foram mortos pelo crime de pensar diferente! Desse crime tanto católicos quanto protestantes são culpados. Os mortos foram pássaros que se recusaram a ficar dentro das gaiolas. Os hereges.
ALVES, Rubem, Dogmatismo e Tolerância – Edições Loyola – SP – 2004 – Pp 9-10.
Um comentário:
Não diz a Palavra: "Trazei todo pensamento cativo a Cristo"?
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abraços
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